terça-feira, 23 de março de 2010

Machucar impunemente o corpo do outro



Por Liliana Lavoratti

É permanente e antiga a prática autorizada da violência física contra os mais fracos, sobretudo pobres e negros. No período escravocrata, os negros chegavam a ser espancados em público como demonstração de prestígio e poder dos senhores. “A intrusão sobre o corpo do homem pobre e negro é um elemento constante e contemporâneo. Machucar determinados corpos é uma autorização a priori. Se os violadores escolherem o corpo e o lugar certos, provavelmente nada acontece, tamanho é o grau de impunidade”, afirma o psicanalista Paulo Cesar Endo, professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

As estatísticas não deixam dúvidas: o Brasil está entre os cinco países que mais matam jovens (17 a 24 anos) no mundo, vítimas das forças policiais e homicidas. O período que mais se torturou no Brasil foi depois da ditadura. “Essa é outra constatação que indica claramente que a permanência dessas agressões está diretamente vinculada com o legado deixado pelos aparelhos utilizados no período ditatorial contra os que resistiram ao autoritarismo”, argumenta o psicanalista.

Se na década de 1970 o alvo eram os militantes de organizações de esquerda, líderes estudantis e intelectuais que se insurgiam contra o regime militar, com o fim da ditadura, os pobres – sobretudo os negros, jovens e de baixa escolaridade – passaram a ser as vítimas da agressão do corpo físico, explica o professor da USP. “Embora qualquer cidadão possa ser atingido pelo livre arbítrio das forças de segurança, que não querem abrir mão do privilégio de machucar algum corpo alheio, existe um grupo de vítimas privilegiadas”, acrescenta.

Não é por menos que os brasileiros evitam abordar os policiais, que a princípio existem para proteger a população. Segundo Endo, o aparato de segurança, usado no passado para combater a guerra urbana e rural continua agindo como nos tempos do regime militar, mesmo depois do Estado democrático de direito. Ao perceber que a estrutura de segurança é usada contra a população, os cidadãos passam a ver o Estado como algo separado de sua realidade e começa a conceber a possibilidade de justiça pelas próprias mãos, e a segurança privada ganha espaço. “Num sistema em colapso como o nosso, com aumento dos índices de letalidade da violência, não existe a menor condição de o Estado vir em socorro logístico das vítimas, proporcionando reparação”, afirma o psicanalista.

Não é por acaso que se reproduzem nas grandes cidades os Centros de Referência e Apoio às Vítimas de Fóruns contra a Violência, iniciativas da sociedade civil que oferecem algum amparo material e psicológico a vítimas e familiares de violações sofridas em espaços públicos. “Infelizmente, os pobres não possuem organização nem recursos como os militantes políticos do passado, que conseguiram reivindicar reparação”, acrescenta.

E, mais uma vez, se estabelece o círculo vicioso: o corpo que tem direito à proteção é o do endinheirado capaz de contratar segurança privada, pois o único lugar seguro fica sendo o privado. Na avaliação do professor da USP, esse quadro levará algum tempo para mudar, uma vez que o Estado se move de acordo com a sociedade. “E a nossa sociedade ainda é extremamente conservadora em relação a esse tema, Vê na pena de morte, na redução da maioria penal e no não reconhecimento dos crimes de tortura a saída para o problema da violência”

Liliana Lavoratti é jornalista e escreveu para esta edição.

Texto originalmente publicado na edição Nº 26, Fev. 2010 da revista Sociologia.

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