domingo, 11 de abril de 2010

Aborto, soberania e mudez das mulheres



Por Marcia Tiburi

Um dos aspectos mais interessantes quando se discute o aborto hoje é o fato de que os principais participantes da discussão são homens. Os mesmos que - é preciso dizer - nunca irão parir, jamais serão mães, não abortarão. Eles falam, enquanto as mulheres fazem. Não devemos com isso supor que os homens não deveriam participar de tais discussões, mas perguntar por que a palavra dos homens se mostra prevalente nesta questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados do que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou não seus abortos, tendo ou não seus filhos. A contradição entre o discurso dos homens e a ação praticada pelas mulheres é o que precisa ser levada a sério. Ela pode ajudar a explicar porque o aborto não foi legalizado no Brasil e nem será em países onde as mulheres são, em sua maioria, pobres e desprovidas de poder. Por que as mulheres esperam caladas por todas as decisões políticas, inclusive às que as tocam diretamente?

A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyerismo do qual são a mercadoria. Que as decisões sobre seus próprios corpos não pertença às mulheres é uma contradição que poucas podem avaliar. Não ter voz significa não pertencer à política. À medida que não participam e nem percebem o quanto estão alienadas da conversa, as mulheres perpetuam a injustiça que as trouxe até aqui. Em última instância, estão distantes da ética que envolve a decisão sobre seus direitos e sua própria vida.

Além disso, a questão do aborto sinaliza que a liberdade das mulheres - prisioneiras ancestrais de uma estrutura social que tem sua lógica - está sempre vigiada. Que nossa sociedade seja patriarcal significa bem mais do que dominação dos homens sobre as mulheres. Que estas sejam vítimas e aqueles algozes. Mas que o patriarcado depende da ausência de democracia na qual os direitos das mulheres venham à luz.

O que realmente assusta quando se fala em aborto é o que virá com a fala das mulheres e que dia após dia é praticado em silêncio nas clínicas deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano ainda que clandestino. A soberania daquele que emite uma opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por meio de sua fala, valores, relações e consensos. Aquela que fala em seu próprio nome manifesta a possibilidade universal de que muitas a sigam ou simplesmente saiam da clandestinidade, única forma pela qual mulheres podem ser soberanas sobre seus próprios corpos sem correrem riscos na ordem moral e legal. É esta soberania das mulheres que assusta. Por isso, ela permanece na clandestinidade.

A ausência histórica de autorização para a fala e, assim para o poder, é elemento fundador do lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. A fala das mulheres causa angústia e temor na ordem. Que mulheres possam tomar suas decisões e sejam amparadas pela justiça é algo que uma sociedade que se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma ampla renovação dos costumes.

Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro ou da liberdade sobre a própria vida, praticam o aborto soberanamente. As que não tem poder algum – nem aquisitivo, nem intelectual, nem qualquer outro poder que garanta a autoconsciência quanto à pertença de seus corpos – são vítimas de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida. Homens desde sempre souberam disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos que lhes prestaram serviços, também os corpos de seus empregados, de seus filhos e filhas.

Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.

Marcia Tiburi é graduada em Filosofia e Artes e mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, 26 de julho de 2007, coluna Tendências/ Debates, A3.

Márcia Galvão fala sobre o movimento estudantil


 

"Política não é o partidarismo, é você quem faz a política e ela se faz no exercício, não é na omissão. O cidadão é essencialmente político e ele precisa exercer isso na universidade para poder transpor os muros e fazer a sociedade melhor [...]"

Por Elisson César

Em sua concepção, o que representa o movimento estudantil enquanto organização civil a favor de direitos que são, antes de tudo, direitos humanos?

A gente pode fazer uma análise do movimento estudantil atual e em outros momentos. E, enquanto movimento social humano, é de fundamental importância, até porque agrega interesses do estudante em si, mas agrega os interesses da juventude, sendo que a juventude sempre foi a banda da revolução, e aquele que permanece jovem ele guarda esse fervor da transformação, da mudança. Então o movimento estudantil tem essa alegria, essa vontade, essa disposição e luta. Sempre lutou, sempre teve como bandeira a questão dos direitos humanos de transformar, de modificar e de tornar melhor.

O que representou o movimento estudantil na sua vida acadêmica e qual a importância disso para sua formação política e intelectual?
  
Olhe, eu acho que o que sou hoje eu devo ao movimento estudantil. A minha visão de mundo e de vida foram formadas, sobretudo, no decorrer da minha militância, então as minhas escolhas, minha profissão e como eu me posiciono politicamente, grande parte disso foi construído no movimento estudantil.

Como você vê o movimento estudantil em nossa região hoje?

O secundarista foi perdendo a sua característica, ele foi se fragmentando e isso está atrelado à questão da luta pela quebra do monopólio da carteira que prejudicou muito. Você não ouve mais falar nos grêmios estudantis com a conotação que tinha na década de 1990, por exemplo. Essa organização não está existindo. Na universidade, eu sempre procuro saber o que está acontecendo, quais são as discussões, se elas existem. Mas a gente sabe que nacionalmente, no atual governo, o movimento estudantil praticamente estagnou pela própria questão ideológica, o movimento estudantil está nas mãos da UJS (União da Juventude Socialista) desde o final da década de 1980 e isso fez com que o PC do B desse um direcionamento ao movimento estudantil do ponto de vista político partidário mesmo. Quando Lula assumiu, o movimento estudantil se acomodou, então eu acho que isso acaba refletindo aqui na região, dentro das universidades e dentro das escolas. 

Sabemos que a educação é o meio mais efetivo de emancipação política e social. De que forma teremos um sistema educacional que contemple a formação de sujeitos atuantes em nossa sociedade?

Primeiro eu acredito que muito a longo prazo, porque a educação não é prioridade e a gente sabe disso, mesmo com as propostas políticas e educacionais do atual governo. A gente percebe uma juventude que vive na era das incertezas, na era: “o que fazer?”. Porque os paradigmas foram rompidos, a luta ganhou outras conotações, a coisa ficou muito festiva, ideologicamente se fragmentou muito e a juventude passou a ter uma outra visão das questões. Não é que se despolitizou completamente, eu não acredito nesse discurso fatalista do fim da política estudantil, mas ela tem uma nova configuração e quem está no movimento estudantil tem que ter esse olhar, essa juventude não quer só a política pela política, quer a política, o lazer, a cultura... A juventude é outra, não é mais aquela juventude da redemocratização. Embora em muitos momentos são as mesmas, mas as lutas são outras, as exigências são outras e esse jovem também tem um comportamento diferenciado.

Recentemente tivemos a gratuidade da UPE (Universidade de Pernambuco) alcançada após vários embates políticos. Enquanto militante em sua época de estudante dessa instituição, qual a participação do movimento estudantil nesse processo?

Dentro da UPE, no período da década de 1990, onde inclusive fui presidente do Diretório Acadêmico, tínhamos um grupo chamado Nação Mandacaru e nós agitávamos os corredores daquela universidade com a proposta da gratuidade. Promovemos muitas discussões, muitas palestras, passeatas enormes no sentido de garantir isso e eu me sinto hoje como uma das pessoas que trilharam esse caminho, porque a gente deu continuidade a uma série de discussões que já vinham sendo realizadas por outros grupos, mas foi uma sacudida na universidade na época: problematizamos, argumentamos e buscamos muito. Isso teve uma continuidade depois, logo em seguida deu uma resfriada e agora é uma realidade, fruto do movimento estudantil, da luta dos estudantes que às vezes a gente pensa que é uma coisa imediatista, mas é algo que tem que ser trabalhado até ser alcançado e é inquestionável que os estudantes tiveram um papel decisivo nisso.

Qual a análise que você faz dos movimentos estudantis após o processo de redemocratização do Brasil, em especial durante o governo FHC (Fernando Henrique Cardoso)?

A partir do final da década de 1970, quando o movimento estudantil busca se reestruturar, ainda com todas as dificuldades de um regime fechado, percebemos a importância desse movimento para o processo de redemocratização. Eu tenho a lembrança ainda da década de 1980, adolescente em Salvador: as paralisações, as discussões que havia na escola – mesmo não permitidas – mas que foram extremamente importantes. Aí a gente vai ter o fora Collor que, claro, tem várias discussões acerca do que foi o movimento dos Caras Pintadas – se foi uma coisa que veio a reboque de algo que iria acontecer, de interesses políticos maiores – que teve uma importância muito significativa para a efetivação da mudança da política no Brasil.

Se a juventude não tivesse lutado, não tivesse organizado os grandes congressos da década de 1990, nós talvez não tivéssemos conseguido colocar Lula no poder, então ele também deve isso ao movimento estudantil, ao PSTU, ao PC do B, ao PT e à militância jovem com uma formação política muito forte, onde as discussões tinham um nível muito alto e que elevavam o nível de quem estava na universidade nesse período.

Na época do governo FHC, nós estávamos com esse grupo na universidade e a gente batia mesmo de frente, a gente contestava o papel de um sociólogo no poder, de um cara que tinha combatido a ditadura militar, que tinha um discurso de esquerda e que estava no poder deixando a juventude frustrada. Então, o movimento estudantil bateu de frente com ele. Nós chegamos a fazer camisas na universidade dizendo que ele usava uma máscara dos Estados Unidos. Ele era a representação de uma política neoliberal que não era o que a gente queria e que foi alvo de muitos embates do movimento estudantil na época.

O que você pensa sobre o vínculo de movimentos estudantis com alguns partidos políticos? A política partidária nesse contexto é uma realidade atual ou é histórica?

É histórico. Se você pensar que a fundação da UNE em 1937 tinha a presença do ministro da educação Gustavo Capanema e as deliberações de funcionamento dessa fundação foram determinadas nesse contexto. Uma das determinações era a seguinte: “o governo Vargas determina que não haja discussões políticas dentro da UNE”. Um aparelhamento total e completo; então era servindo cafezinho e discutindo o sexo dos anjos, porque assim o Estado Novo queria. E isso aconteceu durante toda a história da UBES e da UNE, ninguém pode ter a ingenuidade de achar que o movimento estudantil teve em algum momento desvinculado das questões partidárias, e nem é possível porque ideologicamente os indivíduos têm as suas opções e a eles não pode ser negado o direito de ter um partido político. Que democracia é essa? Porque você está no movimento estudantil não pode ter um partido? Você vai ter a sua ideologia, vai ter a teoria que você defende e você vai exercitar isso dentro dos movimentos sociais, e o movimento estudantil é um movimento social.

Ao falar em movimento estudantil, é difícil não relembrar o momento conflituoso da ditadura militar, tendo em vista que foi uma das organizações civis que representaram grande foco de resistência à repressão. O que você tem a dizer a respeito e qual a relação que se pode estabelecer com os movimentos ocorridos em 1968 na frança, por exemplo?

Isso faz parte de toda uma conjuntura mundial. Claro que a gente não pode romantizar muito, eu sempre trouxe para minha fundamentação e visão de movimento estudantil uma coisa muito romântica e depois você vai percebendo que não é bem assim. O contexto do Brasil acabou favorecendo que a gente tivesse uma identificação com as questões francesas inevitavelmente e nos Estados Unidos nós também vamos ter focos de resistência no mesmo período, então era uma juventude que tinha uma característica bem interessante de uma politização muito grande, onde a escola, a universidade não eram lugares apenas da educação formal, sistemática e livresca, mas era da formação política. As universidades e as escolas nos períodos de férias elas funcionavam pra discussões políticas, leituras de livros, de textos e era uma juventude que tinha uma proposta, não era uma juventude sem proposta, romântica sim dentro daquele panorama, mas a gente não pode negar a importância da resistência do movimento estudantil nas décadas de 1960 e 1970 pra a história do Brasil e pra história do mundo.

Nos deparamos com uma mídia dominante que não raramente tenta enfraquecer os movimentos sociais. Como você percebe essa influência dos meios de comunicação?

Eu percebo que isso perpassa pela questão da televisão, da música, da ideia de que o jovem é alienado e que ele não está interessado e que acaba surtindo um efeito logicamente. A resistência de quem acredita e persevera dentro do movimento estudantil é no sentido de lutar contra isso e não é fácil porque não é algo recente, sempre aconteceu, inclusive durante a ditadura militar. A prática de FHC de quebrar o monopólio da carteira, por exemplo, foi a prática de Figueiredo na década de 1970 que fez a mesma coisa e Fernando Henrique quebrou o monopólio para desestabilizar o movimento e para enfraquecê-lo economicamente e isso com o apoio irrestrito dos meios de comunicação, em ambos os casos, todos acharam que o caminho era esse: “tira o dinheiro e enfraquece o movimento”. Essa resistência tem que advir da própria consciência do jovem, de reconhecer o que é a mídia na vida dele, que ela vai ter uma influência muito forte e que o movimento estudantil tem que fazer essa discussão sempre, o que é que essa mídia intenciona? Não há nenhuma ingenuidade nisso, existe o interesse em enfraquecer os movimentos sociais porque inclusive vai combater a própria mídia.

Qual a importância da articulação do movimento estudantil com o poder público? Em sua opinião essa aproximação pode interferir na autonomia das entidades estudantis?

Também, mas é necessário. Se você pensar que hoje em Petrolina nós temos a meia entrada e a meia passagem isso foi uma luta muito local na década de 1990 em que nós fomos às ruas. A lei estava em Recife, mas a gente aqui no Sertão conseguiu a sua aprovação no governo Guilherme Coelho e como isso aconteceu? Indo para as ruas, fazendo passeatas e depois fazendo parte do conselho de transportes do município, nós tínhamos dois representantes no conselho de transportes, nós discutíamos com os empresários, com o sindicato dos motoristas e a prefeitura o valor da passagem. A gente fiscalizava as planilhas, discutia as coisas e a gente votava, isso era extremamente importante, hoje eu não sei como está, mas o movimento estudantil foi tirado dessas discussões, então é necessário porque se não como é que a gente pode fiscalizar, cobrar se você não está mais participando. A gente cobrava o direito de estar nas escolas na formação dos grêmios e a gente brigava por isso. Com relação à lei de meia entrada, quantas noites eu perdi na entrada de casas de show de Petrolina cobrando com a lei na mão que ela fosse cumprida, até que hoje a lei é nacional, mas os empresários não queriam cumprir e o movimento ganhou na força.

Ultimamente vemos a criação de vários movimentos alternativos e que criticam a atuação da UNE (União Nacional dos Estudantes) com o argumento de que não há mais uma representação efetiva dos estudantes e que a entidade está entregue ao governo. Qual a sua análise a esse respeito?

Primeiro que essa discussão não é nova, ela vem se arrastando de congressos em congressos com relação a esse atrelamento com o Governo Federal e lógico que se você tem ideologicamente as figuras do PC do B e do PT que sempre formavam as diretorias da UNE e da UBES, claro que se o PT chega ao poder junto com o PC do B esse atrelamento é maior e isso é inquestionável, só que a autonomia da UNE deve ser garantida pelos estudantes, não é pela diretoria, os movimentos acadêmicos: os Centros Acadêmicos e os Diretórios Acadêmicos eles têm que cobrar essa autonomia, só discutir a alternativa de outros movimentos, de outras entidades não sei se isso é legal, porque você vai enfraquecer toda uma história de UNE e pode ser resgatado, você não pode acabar com a entidade, porque a entidade não são as pessoas, é a entidade, as pessoas elas vão passar e isso tem que ser alcançado pela luta dos Centros Acadêmicos e dos Diretórios no sentido de garantir essa autonomia.

Temos conhecimento de que alguns que se apresentam como militantes são na verdade pessoas que se utilizam dos movimentos sociais como meio de aquisição de poder e de trampolim político para satisfazer interesses pessoais. Como você observa esse comportamento?

Quantos presidentes da UNE e da UBES se tornaram governadores, ministros, prefeitos e se você fizer um levantamento histórico disso vai se deparar com uma realidade ainda maior. O próprio José Serra que foi presidente da UNE, várias figuras que estão hoje no cenário nacional, que tiveram sua origem política no movimento estudantil, então eu acho que um dos principais exercícios da prática política é dentro dos movimentos sociais e se é um trampolim, que seja, melhor que saia do movimento estudantil, do movimento sindical, das associações de moradores do que apareça uma pessoa que caia de pára-quedas, do nada, que não tenha nenhuma vivência política e torne-se uma liderança partidária e política, eu sempre defendi isso. No entanto, concentrar no movimento estudantil apenas a possibilidade de se promover aí já é outra discussão. É o chamado estudante profissional, que se organiza no movimento porque tem a garantia de visibilidade e de regalias.

Por fim, em sua opinião, quais as principais bandeiras que devem ser defendidas pelo movimento estudantil na atual conjuntura do país?

Todas. Sejam políticas, culturais, econômicas, sexuais, todas são possíveis e devem estar em pauta no movimento estudantil, porque é uma coisa extremamente plural, é você pintar uma universidade, como dizia o Che, de todas as cores, não é pra ser preta ou branca. Todas as discussões devem acontecer, mas deve haver muito estudo, muita pesquisa pra não ficar se discutindo o inútil, até que o inútil também pode ser discutido, mas que tenha uma fundamentação e que não fique só nisso, você tem uma universidade que deve ser plural, então porque não permitir todas as discussões e elevar mesmo o nível de quem está entrando, da garotada. Política é isso, política não é o partidarismo, é você quem faz a política e ela se faz no exercício, não é na omissão. O cidadão é essencialmente político e ele precisa exercer isso na universidade para poder transpor os muros e fazer a sociedade melhor, não ficar no horizonte das quatro paredes, mas avançar profissionalmente, na sua família, na sociedade em que ele está inserido e no país, se ele ficar lá só naquela discussão de palavras bonitas, de belos discursos, não vai transformar, não vai mudar nada.

Márcia Galvão é pós-graduada em História e foi militante do movimento estudantil na década de 1990. Atualmente é professora da rede estadual de ensino na Bahia. 

A entrevista teve a colaboração de Rodrigo Wanderley, Débora Cavalcante e Anderson Vieira, alunos do curso de Ciências Sociais da UNIVASF.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O conluio dos três poderes antidemocráticos




Por João Pedro Stedile

A democracia verdadeira está relacionada com a possibilidade de cada cidadão, todos e todas, terem acesso ao direito à terra, ao trabalho, à renda necessária para uma vida digna, à educação, saúde, moradia digna, cultura e lazer. É evidente que a sociedade brasileira está muito longe dessa situação democrática.

Mas eu gostaria de chamar atenção para outro viés antidemocrático da sociedade brasileira - os três poderes, reais, que exercem enorme controle sobre nossa sociedade: as grandes empresas capitalistas, os meios de comunicação e o poder judiciário. Nenhum deles é eleito ou possui alguma forma de controle por parte da população. Ou seja, fazem o que querem sem que a população tenha o direito de reclamar.

Nos últimos tempos foi se formando um verdadeiro conluio entre esse três poderes para defender os interesses de uma classe dominante cada vez mais rica, concentradora e desumana. Os grupos que controlam os meios de comunicação geram uma versão na sociedade sobre um fato e induzem o poder judiciário ou o Ministério público a agir. Disso podem resultar processos, criminalização, uso da polícia ou escárnio público.

Vejam o caso da ocupação que o MST fez da fazenda grilada pela empresa Cutrale. As terras são públicas, da União. Mas a Globo transformou o caso num crime hediondo. a juíza de plantão pediu a prisão de 51 pessoas. E a polícia civil e militar do governo Serra fez o serviço com ares de espetáculo. Depois o Tribunal de Justiça mandou soltar os presos, tal a injustiça. Mas a Globo não repercutiu. E a "sociedade" já tinha formado a sua opinião.

O governo editou um novo plano de direitos humanos, resultado de amplo processo de consultas que envolveu milhares de pessoas. Não há nada no plano que fira a Constituição; ao contrário, é apenas a junção de propostas para viabilizá-la. Nada muito diferente do que o governo FHC já editou no Plano I. Mas agora a Globo e setores do judiciário transformaram o plano em inadmissível.

Lembram-se do tratamento dado à legalização das terras indígenas Raposa Serra do Sol? Ou como a Globo e as empresas grileiras de terras públicas exigiram a suspensão da legalização de terras quilombolas, determinada pela Cinstituição? E o apoio aos transgênicos? A Anvisa localizou 250 mil litros de venenos agrícolas adulterados e contrabandeados na fábrica da Syngenta. Mas a imprensa e o poder judiciário ficaram calados, protegendo seus verdadeiros patrões.

 Na política internacional é vergonhoso o tratamento discricionário dado a presidentes democraticamente eleitos, como o da Venezuela e Irã. Devemos refletir sobre como o Estado e a República brasileira foram sequestrados por três poderes antidemocráticos.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Texto originalmente publicado na edição Nº 156, Mar. de 2010 da revista Caros Amigos.