terça-feira, 23 de março de 2010

Respeito ao clássico



Por Tatiana Alméri

O desenvolvimento do sistema capitalista não fez com que a estruturação teórica do pensamento de Marx não se fundamentasse na estrutura econômica e social atual. O produto continua sendo propriedade do capitalista, e não do operário, assim, “O capitalista para, por exemplo, o valor diário da força de trabalho; logo, o seu uso lhe pertence. Do mesmo modo lhe pertencem os outros elementos necessários à fabricação do produto: os meios de produção.” (MARX, 1982, p. 34), O plus da atualidade é que os meios de produção valem mais do que a própria força de trabalho, ou seja, as máquinas são muito mais valorizadas que as pessoas, salvo exceções. Hoje, prefere-se investir em tecnologia a valorizar pessoas, afinal as máquinas são, muitas vezes, mais eficientes, não faltam no serviço, conseguem fazer o trabalho em um tempo muito mais diminuto e quando quebram podem ser substituídas sem que o produto final se altere.

A mais-valia – coeficiente entre o valor que os trabalhadores produzem e os respectivos salários, é uma diferença que acaba se sintetizando em um trabalho gratuito, uma venda sem remuneração, uma transferência de excedente para os capitalistas, a qual se resume no lucro e também em uma grande ferramenta da divisão de classe no Sistema Capitalista – continua sendo um dos principais abusos dos burgueses, ainda mais com o grande índice de desenvolvimento tecnológico, porém, esta é “camuflada” pela famosa Participação dos Lucros e Resultados (PLR).

Historicamente, uma das lutas dos trabalhadores se sintetiza na tentativa de que as pessoas participem não somente dos problemas de uma empresa, mas também das decisões e dos resultados alcançados pelo grupo empresarial. Surge aí um conceito de administração participativa, como um mecanismo de recompensa ao trabalho dos proprietários aos trabalhadores, o que, teoricamente, mantêm os trabalhadores próximos às tomadas de decisões sobre seu próprio trabalho. A luta pela obtenção, na prática, da PLR é tão grande que, certamente, deixou-se de lado a reivindicação proposta por Marx com relação à mais-valia, algo que, se calculado corretamente, seria, quantitativamente, um valor muito maior que a própria PLR.

Além da venda da força de trabalho, da existência da mais-valia e da PLR, a não reflexão sobre os acontecimentos históricos está cada vez mais fundamentada, o que justifica Marx afirmar que a força motriz da História é a luta de classes. As classes sociais, atualmente, no Brasil, não conseguem se unir para reivindicar direitos, e com isso a corrupção está cada vez maior, a classe dominante continua fazendo o que deseja com a “massa” e assim a dominação capitalista se fundamenta com mais vigor.

Quando Marx afirmava: “Proletários de todos os países, uni-vos” estava mostrando que a união da maioria poderia fazer com que a opressão, possibilitada pelo Sistema Capitalista, se desconfigurasse, isso por intermédio de uma Revolução. E, por incrível que pareça, é disso que estamos necessitando no século XXI, não necessariamente de uma Revolução concreta, mas quem sabe várias reformas, que trouxessem uma modificação nas estruturas vigentes. Mas para isso seria inevitável a prerrogativa de Marx, UNI-VOS!

Uni-vos a favor da reflexão, das reivindicações, das estruturas que não concordamos, do fim dos pensamentos opressores e do basta a todas essas reclamações feitas diariamente sem uma fundamentação teórica, sem nada para se calcar concretamente e de exigências individuais. Marx, ou outro clássico que identifique? Necessita-se deles mais do que enxerga-se, são de fundamentos que surgem reflexões coerentes.

Tatiana Alméri é socióloga pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Sociologia Política.

Texto originalmente publicado na edição Nº 26, Fev. 2010 da revista Sociologia.

Machucar impunemente o corpo do outro



Por Liliana Lavoratti

É permanente e antiga a prática autorizada da violência física contra os mais fracos, sobretudo pobres e negros. No período escravocrata, os negros chegavam a ser espancados em público como demonstração de prestígio e poder dos senhores. “A intrusão sobre o corpo do homem pobre e negro é um elemento constante e contemporâneo. Machucar determinados corpos é uma autorização a priori. Se os violadores escolherem o corpo e o lugar certos, provavelmente nada acontece, tamanho é o grau de impunidade”, afirma o psicanalista Paulo Cesar Endo, professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

As estatísticas não deixam dúvidas: o Brasil está entre os cinco países que mais matam jovens (17 a 24 anos) no mundo, vítimas das forças policiais e homicidas. O período que mais se torturou no Brasil foi depois da ditadura. “Essa é outra constatação que indica claramente que a permanência dessas agressões está diretamente vinculada com o legado deixado pelos aparelhos utilizados no período ditatorial contra os que resistiram ao autoritarismo”, argumenta o psicanalista.

Se na década de 1970 o alvo eram os militantes de organizações de esquerda, líderes estudantis e intelectuais que se insurgiam contra o regime militar, com o fim da ditadura, os pobres – sobretudo os negros, jovens e de baixa escolaridade – passaram a ser as vítimas da agressão do corpo físico, explica o professor da USP. “Embora qualquer cidadão possa ser atingido pelo livre arbítrio das forças de segurança, que não querem abrir mão do privilégio de machucar algum corpo alheio, existe um grupo de vítimas privilegiadas”, acrescenta.

Não é por menos que os brasileiros evitam abordar os policiais, que a princípio existem para proteger a população. Segundo Endo, o aparato de segurança, usado no passado para combater a guerra urbana e rural continua agindo como nos tempos do regime militar, mesmo depois do Estado democrático de direito. Ao perceber que a estrutura de segurança é usada contra a população, os cidadãos passam a ver o Estado como algo separado de sua realidade e começa a conceber a possibilidade de justiça pelas próprias mãos, e a segurança privada ganha espaço. “Num sistema em colapso como o nosso, com aumento dos índices de letalidade da violência, não existe a menor condição de o Estado vir em socorro logístico das vítimas, proporcionando reparação”, afirma o psicanalista.

Não é por acaso que se reproduzem nas grandes cidades os Centros de Referência e Apoio às Vítimas de Fóruns contra a Violência, iniciativas da sociedade civil que oferecem algum amparo material e psicológico a vítimas e familiares de violações sofridas em espaços públicos. “Infelizmente, os pobres não possuem organização nem recursos como os militantes políticos do passado, que conseguiram reivindicar reparação”, acrescenta.

E, mais uma vez, se estabelece o círculo vicioso: o corpo que tem direito à proteção é o do endinheirado capaz de contratar segurança privada, pois o único lugar seguro fica sendo o privado. Na avaliação do professor da USP, esse quadro levará algum tempo para mudar, uma vez que o Estado se move de acordo com a sociedade. “E a nossa sociedade ainda é extremamente conservadora em relação a esse tema, Vê na pena de morte, na redução da maioria penal e no não reconhecimento dos crimes de tortura a saída para o problema da violência”

Liliana Lavoratti é jornalista e escreveu para esta edição.

Texto originalmente publicado na edição Nº 26, Fev. 2010 da revista Sociologia.

Para os calouros


 
Por Elisson César

Preparados no ensino médio e não raramente em cursos públicos ou particulares, seus nomes constam na lista dos aprovados; alimentam um ritual de corte de cabelo para os meninos e depilação da sobrancelha para as meninas; são tomados pela ansiedade para realizar a matrícula; ficam apreensivos, até mesmo com medo do trote feito pelos veteranos e nutrem a incerteza de estar ou não fazendo a opção correta. Estes são os nossos calouros.

Curso superior, novos professores e disciplinas, uma estrutura que naturalmente se diferencia da escola, um ambiente que parece familiar, mas que nos causa estranhamento e mais que isso: lugar onde se deposita a esperança de realização de sonhos, de profissões, de ideais, de uma proposta para o futuro. Se ainda não foram apresentados a ela, essa é a universidade.

Para uns o choque é inevitável, após a euforia de ser aprovado começam as aulas na tão esperada faculdade e, para muitos, começa também a dificuldade de se adaptar a uma nova maneira de aprender, uma nova fórmula do que é ser aluno. Essa afirmação não significa que ao inserir-se nesse mundo torna-se menos inteligente ou as capacidades individuais ficam reduzidas, mas nada será como antigamente, ao menos não deve, pois esse novo ser que agora surge necessita ganhar autonomia, portanto, deve mais que nunca propor, discutir, questionar, ler, levantar dúvidas, acrescentar, enriquecer, somar, na constante tarefa de ser estudante e de fazer parte de um processo chamado ensino-aprendizagem. Parece discurso de professores do ensino fundamental, entretanto aplica-se perfeitamente à nossa realidade: somos alunos e é na relação dialógica que estabelecemos com os nossos professores que se constrói o conhecimento.

E o que dizer das Ciências Sociais?! Isso é uma disciplina?! É um bicho?! Uma profissão?! Uma ideologia?! Um ramo da ciência?! Um centro de formação para loucos?! Um curso para pessoas que querem mudar o mundo?! Há quem pense que no início até queremos mudar o mundo, depois vemos que isso é um tanto difícil, decidimos então modificar a América Latina, até percebermos que talvez não seja tão simples assim. Podemos optar por querer um Brasil melhor, mas no fim a nossa cidade é o que finalmente importa e de repente, meus camaradas, o que nos resta é a luta pela sobrevivência.

A possibilidade de modificar a si mesmo e se revestir de valores humanos já é o bastante pra se ter a pretensão de mudança naquilo que julgamos ser difícil mudar, para tanto, é preciso pensar universalmente e se perceber enquanto parte integrante de um mundo que caduca e que precisa de esforços para o entendimento das suas dinâmicas sociais e das relações que permeiam esse contexto.

Mas, voltando às nossas indagações... O que seria mesmo as Ciências Sociais? Um emaranhado de coisas que falam da sociedade? É aquela disciplina que temos no colegial chamada de estudos sociais? Seria aquele atendimento que é oferecido em hospitais, o tal Serviço social? É aquele curso que só serve pra gastar dinheiro? Ou ainda um curso de quem é frustrado e queria mesmo era fazer direito? Bom, há quem afirme um pouco de cada coisa, mas a resposta correta, que lhe deixe satisfeito completamente talvez nunca seja dada, ou quando você estiver no final da vida, por falta de opção, formule um conceito que considere a sua definição do que é "isso". Porque toda Ciência Social é um pêndulo que por hora nos é subjetiva demais, e não obstante se torna tão objetiva e coerente que assusta. É algo que se sente, se vivencia, experimenta e qualquer resposta é insipiente perto da grandeza do que representa, ao mesmo passo, a abstração e a concretude dessa coisa que se veste de ciência e se enfeita de humanidade.

Sobre nós? Bom... Alguns serão assim como forasteiros e estão aqui de passagem, meio pra lá, meio pra cá, que não sabem ainda o que querem da vida e aqui se firmaram por falta de opção ou por qualquer outra motivação que cabe a si responder. Têm outros que estão convictos do que fizeram, escolheram por afinidade, por se sentirem à vontade nesse meio em que nos encontramos. Ainda há aqueles que não vêem esse curso como um fim em si mesmo. Fim? Quem disse que essa história acaba aqui, é apenas o início de um caminho que vai ser trilhado exclusivamente por nós, portanto, devemos ponderar nossas escolhas, nossas ações e extravasar quando preciso for, mas ser responsável pra assumir que o profissional e o ser humano que se produz e se reproduz constantemente, além de ser um produto social é também construído por nós.

Elisson César é estudante do curso de Ciências Sociais da UNIVASF.

Texto apresentado na semana de integração para os calouros do curso.

Por uma Assembleia reformista



Por Guilherme Scalzilli

O sistema democrático brasileiro jamais será plenamente consolidado enquanto o Legislativo continuar atolado na imoralidade e no descrédito público. A crise é tamanha que exige uma completa modificação de paradigmas.

Evitemos tentar resumir esboços viáveis para um projeto dessa complexidade, que exige debates extensos e embasamento técnico. Parece indiscutível, porém, que uma reforma política eficaz envolve a amplo espectro temático, atingindo desde a atividade parlamentar às regras eleitorais, passando pela própria administração das Casas. Tendo em vista a magnitude das transformações necessárias, os congressistas possuem motivos de sobra para evitar empreendê-las.

Portanto, a reforma só poderia nascer por iniciativa da sociedade, através de mecanismo criado exclusivamente para desenvolver um plano de atuação pré-estabelecido. Esse instrumento chama-se Assembleia Constituinte. Em qualquer dos muitos formatos possíveis, sua principal característica será a legitimidade das decisões, consagradas no processo de escolha dos representantes.

Para facilitar as deliberações e o acompanhamento público, o colegiado deverá ser pouco numeroso, com pauta restrita e plataformas inequívocas. É crucial salientar o foco especificamente político, pois circulam no Congresso propostas de plebiscito para referendar a convocação de Constituintes com poderes múltiplos demais, o que pode acarretar dispersão e desvios de finalidade.

Encaminhada com responsabilidade, a ideia conquistará pleno embasamento constitucional e sólido apoio da população, cujo anseio por mudanças é incontestável. Mas, além desses requisitos básicos, a democracia participativa depende também de contextos históricos propícios – e a oportunidade, se realmente existe agora, talvez demore muitos anos para renascer com a mesma força.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora casa amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com.

Texto originalmente publicado na edição Nº 155, Fev. 2010 da revista Caros Amigos.

Jobim, Vannuchi e a memória brasileira



Por Frei Betto

Indignados com o Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado por Lula, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das Forças Armadas teriam apresentado suas renúncias, recusadas pelo presidente.

Lula teria prometido rever pontos do programa, como os que exigem a instalação de uma Comissão da Verdade, a abertura dos arquivos militares e a retirada, de vias públicas, de nomes de pessoas coniventes com a repressão da ditadura.

O ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, cumpre seu dever de cidadão e autoridade. O Brasil é o único país da América Latina, assolado no passado por ditadura militar, que prefere manter debaixo do tapete crimes cometidos por agentes públicos.

A lei da anistia, aprovada pelo governo Figueiredo, é uma aberração. Anistia se aplica a quem foi investigado, julgado e punido. O que jamais ocorreu, no Brasil, com os responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos. Aqueles que lutaram contra regime militar e pela redemocratização do país foram, sim, severamente castigados. Que o digam Vladimir Herzog e Frei Tito de Alencar Lima.

Tortura é crime hediondo, inafiançável e imprescritível. Ao exigir que se apure a verdade sobre o período ditatorial, o ministro Vannuchi e todos nós que o apoiamos não somos movidos por revanchismo. Jamais pretendemos fazer a eles o que eles fizeram a nós. Trata-se de justiça: descobrir o paradeiro dos desaparecidos; entregar às suas famílias os restos mortais dos que foram assassinados e enterrados clandestinamente; comprovar que nem todos os militares foram coniventes com as atrocidades cometidas pelo regime; livrar as Forças Armadas da influência de figuras antidemocráticas que exaltam a ditadura e acobertam a memória de seus criminosos.

O presidente Lula não merece tornar-se refém dos saudosistas da ditadura. É a impunidade que favorece, hoje, a prática de torturas por parte de policiais civis e militares, como ocorre em blitzen, delegacias e cadeias Brasil afora.

Inútil os militares tentarem encobrir a verdade sobre o nosso passado. Até no filme de Fábio Barreto, “Lula, o filho do Brasil”, a truculência da ditadura é exposta em cenas reais e fictícias. “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton – o filme mais realista sobre o período militar – revela como jovens estudantes idealistas eram tratados com uma crueldade de fazer inveja aos nazistas.

Anistia não é amnésia. O Brasil tem o direito de conhecer a verdade sobre a guerra do Paraguai, Canudos e a ditadura instalada em 1964. Bisneto e neto de militares, sobrinho de general e filho de juiz de tribunal militar (anterior ao golpe de 64), gostaria que os nossos Exército, Marinha e Aeronáutica fossem mais amadas que armadas.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L. F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros. 

Texto originalmente publicado na edição Nº 155, Fev. 2010 da revista Caros Amigos.