domingo, 11 de abril de 2010

Aborto, soberania e mudez das mulheres



Por Marcia Tiburi

Um dos aspectos mais interessantes quando se discute o aborto hoje é o fato de que os principais participantes da discussão são homens. Os mesmos que - é preciso dizer - nunca irão parir, jamais serão mães, não abortarão. Eles falam, enquanto as mulheres fazem. Não devemos com isso supor que os homens não deveriam participar de tais discussões, mas perguntar por que a palavra dos homens se mostra prevalente nesta questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados do que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou não seus abortos, tendo ou não seus filhos. A contradição entre o discurso dos homens e a ação praticada pelas mulheres é o que precisa ser levada a sério. Ela pode ajudar a explicar porque o aborto não foi legalizado no Brasil e nem será em países onde as mulheres são, em sua maioria, pobres e desprovidas de poder. Por que as mulheres esperam caladas por todas as decisões políticas, inclusive às que as tocam diretamente?

A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyerismo do qual são a mercadoria. Que as decisões sobre seus próprios corpos não pertença às mulheres é uma contradição que poucas podem avaliar. Não ter voz significa não pertencer à política. À medida que não participam e nem percebem o quanto estão alienadas da conversa, as mulheres perpetuam a injustiça que as trouxe até aqui. Em última instância, estão distantes da ética que envolve a decisão sobre seus direitos e sua própria vida.

Além disso, a questão do aborto sinaliza que a liberdade das mulheres - prisioneiras ancestrais de uma estrutura social que tem sua lógica - está sempre vigiada. Que nossa sociedade seja patriarcal significa bem mais do que dominação dos homens sobre as mulheres. Que estas sejam vítimas e aqueles algozes. Mas que o patriarcado depende da ausência de democracia na qual os direitos das mulheres venham à luz.

O que realmente assusta quando se fala em aborto é o que virá com a fala das mulheres e que dia após dia é praticado em silêncio nas clínicas deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano ainda que clandestino. A soberania daquele que emite uma opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por meio de sua fala, valores, relações e consensos. Aquela que fala em seu próprio nome manifesta a possibilidade universal de que muitas a sigam ou simplesmente saiam da clandestinidade, única forma pela qual mulheres podem ser soberanas sobre seus próprios corpos sem correrem riscos na ordem moral e legal. É esta soberania das mulheres que assusta. Por isso, ela permanece na clandestinidade.

A ausência histórica de autorização para a fala e, assim para o poder, é elemento fundador do lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. A fala das mulheres causa angústia e temor na ordem. Que mulheres possam tomar suas decisões e sejam amparadas pela justiça é algo que uma sociedade que se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma ampla renovação dos costumes.

Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro ou da liberdade sobre a própria vida, praticam o aborto soberanamente. As que não tem poder algum – nem aquisitivo, nem intelectual, nem qualquer outro poder que garanta a autoconsciência quanto à pertença de seus corpos – são vítimas de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida. Homens desde sempre souberam disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos que lhes prestaram serviços, também os corpos de seus empregados, de seus filhos e filhas.

Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.

Marcia Tiburi é graduada em Filosofia e Artes e mestre e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Texto originalmente publicado na Folha de São Paulo, 26 de julho de 2007, coluna Tendências/ Debates, A3.

Márcia Galvão fala sobre o movimento estudantil


 

"Política não é o partidarismo, é você quem faz a política e ela se faz no exercício, não é na omissão. O cidadão é essencialmente político e ele precisa exercer isso na universidade para poder transpor os muros e fazer a sociedade melhor [...]"

Por Elisson César

Em sua concepção, o que representa o movimento estudantil enquanto organização civil a favor de direitos que são, antes de tudo, direitos humanos?

A gente pode fazer uma análise do movimento estudantil atual e em outros momentos. E, enquanto movimento social humano, é de fundamental importância, até porque agrega interesses do estudante em si, mas agrega os interesses da juventude, sendo que a juventude sempre foi a banda da revolução, e aquele que permanece jovem ele guarda esse fervor da transformação, da mudança. Então o movimento estudantil tem essa alegria, essa vontade, essa disposição e luta. Sempre lutou, sempre teve como bandeira a questão dos direitos humanos de transformar, de modificar e de tornar melhor.

O que representou o movimento estudantil na sua vida acadêmica e qual a importância disso para sua formação política e intelectual?
  
Olhe, eu acho que o que sou hoje eu devo ao movimento estudantil. A minha visão de mundo e de vida foram formadas, sobretudo, no decorrer da minha militância, então as minhas escolhas, minha profissão e como eu me posiciono politicamente, grande parte disso foi construído no movimento estudantil.

Como você vê o movimento estudantil em nossa região hoje?

O secundarista foi perdendo a sua característica, ele foi se fragmentando e isso está atrelado à questão da luta pela quebra do monopólio da carteira que prejudicou muito. Você não ouve mais falar nos grêmios estudantis com a conotação que tinha na década de 1990, por exemplo. Essa organização não está existindo. Na universidade, eu sempre procuro saber o que está acontecendo, quais são as discussões, se elas existem. Mas a gente sabe que nacionalmente, no atual governo, o movimento estudantil praticamente estagnou pela própria questão ideológica, o movimento estudantil está nas mãos da UJS (União da Juventude Socialista) desde o final da década de 1980 e isso fez com que o PC do B desse um direcionamento ao movimento estudantil do ponto de vista político partidário mesmo. Quando Lula assumiu, o movimento estudantil se acomodou, então eu acho que isso acaba refletindo aqui na região, dentro das universidades e dentro das escolas. 

Sabemos que a educação é o meio mais efetivo de emancipação política e social. De que forma teremos um sistema educacional que contemple a formação de sujeitos atuantes em nossa sociedade?

Primeiro eu acredito que muito a longo prazo, porque a educação não é prioridade e a gente sabe disso, mesmo com as propostas políticas e educacionais do atual governo. A gente percebe uma juventude que vive na era das incertezas, na era: “o que fazer?”. Porque os paradigmas foram rompidos, a luta ganhou outras conotações, a coisa ficou muito festiva, ideologicamente se fragmentou muito e a juventude passou a ter uma outra visão das questões. Não é que se despolitizou completamente, eu não acredito nesse discurso fatalista do fim da política estudantil, mas ela tem uma nova configuração e quem está no movimento estudantil tem que ter esse olhar, essa juventude não quer só a política pela política, quer a política, o lazer, a cultura... A juventude é outra, não é mais aquela juventude da redemocratização. Embora em muitos momentos são as mesmas, mas as lutas são outras, as exigências são outras e esse jovem também tem um comportamento diferenciado.

Recentemente tivemos a gratuidade da UPE (Universidade de Pernambuco) alcançada após vários embates políticos. Enquanto militante em sua época de estudante dessa instituição, qual a participação do movimento estudantil nesse processo?

Dentro da UPE, no período da década de 1990, onde inclusive fui presidente do Diretório Acadêmico, tínhamos um grupo chamado Nação Mandacaru e nós agitávamos os corredores daquela universidade com a proposta da gratuidade. Promovemos muitas discussões, muitas palestras, passeatas enormes no sentido de garantir isso e eu me sinto hoje como uma das pessoas que trilharam esse caminho, porque a gente deu continuidade a uma série de discussões que já vinham sendo realizadas por outros grupos, mas foi uma sacudida na universidade na época: problematizamos, argumentamos e buscamos muito. Isso teve uma continuidade depois, logo em seguida deu uma resfriada e agora é uma realidade, fruto do movimento estudantil, da luta dos estudantes que às vezes a gente pensa que é uma coisa imediatista, mas é algo que tem que ser trabalhado até ser alcançado e é inquestionável que os estudantes tiveram um papel decisivo nisso.

Qual a análise que você faz dos movimentos estudantis após o processo de redemocratização do Brasil, em especial durante o governo FHC (Fernando Henrique Cardoso)?

A partir do final da década de 1970, quando o movimento estudantil busca se reestruturar, ainda com todas as dificuldades de um regime fechado, percebemos a importância desse movimento para o processo de redemocratização. Eu tenho a lembrança ainda da década de 1980, adolescente em Salvador: as paralisações, as discussões que havia na escola – mesmo não permitidas – mas que foram extremamente importantes. Aí a gente vai ter o fora Collor que, claro, tem várias discussões acerca do que foi o movimento dos Caras Pintadas – se foi uma coisa que veio a reboque de algo que iria acontecer, de interesses políticos maiores – que teve uma importância muito significativa para a efetivação da mudança da política no Brasil.

Se a juventude não tivesse lutado, não tivesse organizado os grandes congressos da década de 1990, nós talvez não tivéssemos conseguido colocar Lula no poder, então ele também deve isso ao movimento estudantil, ao PSTU, ao PC do B, ao PT e à militância jovem com uma formação política muito forte, onde as discussões tinham um nível muito alto e que elevavam o nível de quem estava na universidade nesse período.

Na época do governo FHC, nós estávamos com esse grupo na universidade e a gente batia mesmo de frente, a gente contestava o papel de um sociólogo no poder, de um cara que tinha combatido a ditadura militar, que tinha um discurso de esquerda e que estava no poder deixando a juventude frustrada. Então, o movimento estudantil bateu de frente com ele. Nós chegamos a fazer camisas na universidade dizendo que ele usava uma máscara dos Estados Unidos. Ele era a representação de uma política neoliberal que não era o que a gente queria e que foi alvo de muitos embates do movimento estudantil na época.

O que você pensa sobre o vínculo de movimentos estudantis com alguns partidos políticos? A política partidária nesse contexto é uma realidade atual ou é histórica?

É histórico. Se você pensar que a fundação da UNE em 1937 tinha a presença do ministro da educação Gustavo Capanema e as deliberações de funcionamento dessa fundação foram determinadas nesse contexto. Uma das determinações era a seguinte: “o governo Vargas determina que não haja discussões políticas dentro da UNE”. Um aparelhamento total e completo; então era servindo cafezinho e discutindo o sexo dos anjos, porque assim o Estado Novo queria. E isso aconteceu durante toda a história da UBES e da UNE, ninguém pode ter a ingenuidade de achar que o movimento estudantil teve em algum momento desvinculado das questões partidárias, e nem é possível porque ideologicamente os indivíduos têm as suas opções e a eles não pode ser negado o direito de ter um partido político. Que democracia é essa? Porque você está no movimento estudantil não pode ter um partido? Você vai ter a sua ideologia, vai ter a teoria que você defende e você vai exercitar isso dentro dos movimentos sociais, e o movimento estudantil é um movimento social.

Ao falar em movimento estudantil, é difícil não relembrar o momento conflituoso da ditadura militar, tendo em vista que foi uma das organizações civis que representaram grande foco de resistência à repressão. O que você tem a dizer a respeito e qual a relação que se pode estabelecer com os movimentos ocorridos em 1968 na frança, por exemplo?

Isso faz parte de toda uma conjuntura mundial. Claro que a gente não pode romantizar muito, eu sempre trouxe para minha fundamentação e visão de movimento estudantil uma coisa muito romântica e depois você vai percebendo que não é bem assim. O contexto do Brasil acabou favorecendo que a gente tivesse uma identificação com as questões francesas inevitavelmente e nos Estados Unidos nós também vamos ter focos de resistência no mesmo período, então era uma juventude que tinha uma característica bem interessante de uma politização muito grande, onde a escola, a universidade não eram lugares apenas da educação formal, sistemática e livresca, mas era da formação política. As universidades e as escolas nos períodos de férias elas funcionavam pra discussões políticas, leituras de livros, de textos e era uma juventude que tinha uma proposta, não era uma juventude sem proposta, romântica sim dentro daquele panorama, mas a gente não pode negar a importância da resistência do movimento estudantil nas décadas de 1960 e 1970 pra a história do Brasil e pra história do mundo.

Nos deparamos com uma mídia dominante que não raramente tenta enfraquecer os movimentos sociais. Como você percebe essa influência dos meios de comunicação?

Eu percebo que isso perpassa pela questão da televisão, da música, da ideia de que o jovem é alienado e que ele não está interessado e que acaba surtindo um efeito logicamente. A resistência de quem acredita e persevera dentro do movimento estudantil é no sentido de lutar contra isso e não é fácil porque não é algo recente, sempre aconteceu, inclusive durante a ditadura militar. A prática de FHC de quebrar o monopólio da carteira, por exemplo, foi a prática de Figueiredo na década de 1970 que fez a mesma coisa e Fernando Henrique quebrou o monopólio para desestabilizar o movimento e para enfraquecê-lo economicamente e isso com o apoio irrestrito dos meios de comunicação, em ambos os casos, todos acharam que o caminho era esse: “tira o dinheiro e enfraquece o movimento”. Essa resistência tem que advir da própria consciência do jovem, de reconhecer o que é a mídia na vida dele, que ela vai ter uma influência muito forte e que o movimento estudantil tem que fazer essa discussão sempre, o que é que essa mídia intenciona? Não há nenhuma ingenuidade nisso, existe o interesse em enfraquecer os movimentos sociais porque inclusive vai combater a própria mídia.

Qual a importância da articulação do movimento estudantil com o poder público? Em sua opinião essa aproximação pode interferir na autonomia das entidades estudantis?

Também, mas é necessário. Se você pensar que hoje em Petrolina nós temos a meia entrada e a meia passagem isso foi uma luta muito local na década de 1990 em que nós fomos às ruas. A lei estava em Recife, mas a gente aqui no Sertão conseguiu a sua aprovação no governo Guilherme Coelho e como isso aconteceu? Indo para as ruas, fazendo passeatas e depois fazendo parte do conselho de transportes do município, nós tínhamos dois representantes no conselho de transportes, nós discutíamos com os empresários, com o sindicato dos motoristas e a prefeitura o valor da passagem. A gente fiscalizava as planilhas, discutia as coisas e a gente votava, isso era extremamente importante, hoje eu não sei como está, mas o movimento estudantil foi tirado dessas discussões, então é necessário porque se não como é que a gente pode fiscalizar, cobrar se você não está mais participando. A gente cobrava o direito de estar nas escolas na formação dos grêmios e a gente brigava por isso. Com relação à lei de meia entrada, quantas noites eu perdi na entrada de casas de show de Petrolina cobrando com a lei na mão que ela fosse cumprida, até que hoje a lei é nacional, mas os empresários não queriam cumprir e o movimento ganhou na força.

Ultimamente vemos a criação de vários movimentos alternativos e que criticam a atuação da UNE (União Nacional dos Estudantes) com o argumento de que não há mais uma representação efetiva dos estudantes e que a entidade está entregue ao governo. Qual a sua análise a esse respeito?

Primeiro que essa discussão não é nova, ela vem se arrastando de congressos em congressos com relação a esse atrelamento com o Governo Federal e lógico que se você tem ideologicamente as figuras do PC do B e do PT que sempre formavam as diretorias da UNE e da UBES, claro que se o PT chega ao poder junto com o PC do B esse atrelamento é maior e isso é inquestionável, só que a autonomia da UNE deve ser garantida pelos estudantes, não é pela diretoria, os movimentos acadêmicos: os Centros Acadêmicos e os Diretórios Acadêmicos eles têm que cobrar essa autonomia, só discutir a alternativa de outros movimentos, de outras entidades não sei se isso é legal, porque você vai enfraquecer toda uma história de UNE e pode ser resgatado, você não pode acabar com a entidade, porque a entidade não são as pessoas, é a entidade, as pessoas elas vão passar e isso tem que ser alcançado pela luta dos Centros Acadêmicos e dos Diretórios no sentido de garantir essa autonomia.

Temos conhecimento de que alguns que se apresentam como militantes são na verdade pessoas que se utilizam dos movimentos sociais como meio de aquisição de poder e de trampolim político para satisfazer interesses pessoais. Como você observa esse comportamento?

Quantos presidentes da UNE e da UBES se tornaram governadores, ministros, prefeitos e se você fizer um levantamento histórico disso vai se deparar com uma realidade ainda maior. O próprio José Serra que foi presidente da UNE, várias figuras que estão hoje no cenário nacional, que tiveram sua origem política no movimento estudantil, então eu acho que um dos principais exercícios da prática política é dentro dos movimentos sociais e se é um trampolim, que seja, melhor que saia do movimento estudantil, do movimento sindical, das associações de moradores do que apareça uma pessoa que caia de pára-quedas, do nada, que não tenha nenhuma vivência política e torne-se uma liderança partidária e política, eu sempre defendi isso. No entanto, concentrar no movimento estudantil apenas a possibilidade de se promover aí já é outra discussão. É o chamado estudante profissional, que se organiza no movimento porque tem a garantia de visibilidade e de regalias.

Por fim, em sua opinião, quais as principais bandeiras que devem ser defendidas pelo movimento estudantil na atual conjuntura do país?

Todas. Sejam políticas, culturais, econômicas, sexuais, todas são possíveis e devem estar em pauta no movimento estudantil, porque é uma coisa extremamente plural, é você pintar uma universidade, como dizia o Che, de todas as cores, não é pra ser preta ou branca. Todas as discussões devem acontecer, mas deve haver muito estudo, muita pesquisa pra não ficar se discutindo o inútil, até que o inútil também pode ser discutido, mas que tenha uma fundamentação e que não fique só nisso, você tem uma universidade que deve ser plural, então porque não permitir todas as discussões e elevar mesmo o nível de quem está entrando, da garotada. Política é isso, política não é o partidarismo, é você quem faz a política e ela se faz no exercício, não é na omissão. O cidadão é essencialmente político e ele precisa exercer isso na universidade para poder transpor os muros e fazer a sociedade melhor, não ficar no horizonte das quatro paredes, mas avançar profissionalmente, na sua família, na sociedade em que ele está inserido e no país, se ele ficar lá só naquela discussão de palavras bonitas, de belos discursos, não vai transformar, não vai mudar nada.

Márcia Galvão é pós-graduada em História e foi militante do movimento estudantil na década de 1990. Atualmente é professora da rede estadual de ensino na Bahia. 

A entrevista teve a colaboração de Rodrigo Wanderley, Débora Cavalcante e Anderson Vieira, alunos do curso de Ciências Sociais da UNIVASF.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O conluio dos três poderes antidemocráticos




Por João Pedro Stedile

A democracia verdadeira está relacionada com a possibilidade de cada cidadão, todos e todas, terem acesso ao direito à terra, ao trabalho, à renda necessária para uma vida digna, à educação, saúde, moradia digna, cultura e lazer. É evidente que a sociedade brasileira está muito longe dessa situação democrática.

Mas eu gostaria de chamar atenção para outro viés antidemocrático da sociedade brasileira - os três poderes, reais, que exercem enorme controle sobre nossa sociedade: as grandes empresas capitalistas, os meios de comunicação e o poder judiciário. Nenhum deles é eleito ou possui alguma forma de controle por parte da população. Ou seja, fazem o que querem sem que a população tenha o direito de reclamar.

Nos últimos tempos foi se formando um verdadeiro conluio entre esse três poderes para defender os interesses de uma classe dominante cada vez mais rica, concentradora e desumana. Os grupos que controlam os meios de comunicação geram uma versão na sociedade sobre um fato e induzem o poder judiciário ou o Ministério público a agir. Disso podem resultar processos, criminalização, uso da polícia ou escárnio público.

Vejam o caso da ocupação que o MST fez da fazenda grilada pela empresa Cutrale. As terras são públicas, da União. Mas a Globo transformou o caso num crime hediondo. a juíza de plantão pediu a prisão de 51 pessoas. E a polícia civil e militar do governo Serra fez o serviço com ares de espetáculo. Depois o Tribunal de Justiça mandou soltar os presos, tal a injustiça. Mas a Globo não repercutiu. E a "sociedade" já tinha formado a sua opinião.

O governo editou um novo plano de direitos humanos, resultado de amplo processo de consultas que envolveu milhares de pessoas. Não há nada no plano que fira a Constituição; ao contrário, é apenas a junção de propostas para viabilizá-la. Nada muito diferente do que o governo FHC já editou no Plano I. Mas agora a Globo e setores do judiciário transformaram o plano em inadmissível.

Lembram-se do tratamento dado à legalização das terras indígenas Raposa Serra do Sol? Ou como a Globo e as empresas grileiras de terras públicas exigiram a suspensão da legalização de terras quilombolas, determinada pela Cinstituição? E o apoio aos transgênicos? A Anvisa localizou 250 mil litros de venenos agrícolas adulterados e contrabandeados na fábrica da Syngenta. Mas a imprensa e o poder judiciário ficaram calados, protegendo seus verdadeiros patrões.

 Na política internacional é vergonhoso o tratamento discricionário dado a presidentes democraticamente eleitos, como o da Venezuela e Irã. Devemos refletir sobre como o Estado e a República brasileira foram sequestrados por três poderes antidemocráticos.

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Texto originalmente publicado na edição Nº 156, Mar. de 2010 da revista Caros Amigos.

O guerreiro Obama e o peixe fora d'água



Por Frei Betto

Obama é uma decepção! Recebeu imerecidamente o Nobel da Paz - um presidente que guerreia o Iraque, o Afeganistão e o Paquistão - e, em discurso de agradecimentos, pronunciou a palavra "guerra" 49 vezes!

Obama apoiou o governo golpista de Micheletti em Honduras e, agora, ocupa militarmente o Haiti, sob pretexto de socorrer as vítimas do terremoto, e militariza a América do Sul com a implantação de sete novas bases usamericanas na Colômbia, onde já operam seis.

Só mesmo um ingênuo acredita que os 800 soldados e os 600 civis made in USA que se instalam na Colômbia têm por objetivo combater o narcotráfico e o terrorismo. Desde 1952 os EUA se fazem presentes na Colômbia sob o mesmo pretexto; nem por isso houve redução do tráfico de drogas, consumidas em grande quantidade pela população usamericana.

O objetivo da IV Frota é desestabilizar o governo Chávez, manter sob vigilância o Equador, governado por Rafael Correa, dificultar as vias aéreas e terrestres entre Venezuela, Equador, Bolívia e Paraguai, e controlar as fronteiras com o Brasil.

O governo usamericano empenha-se em reforçar sua hegemonia no planeta. Hoje, mantém 513 bases  militares na Europa; 248 na Ásia; 36 no Oriente Médio; 21 na América Latina; 5 na África. Total: 823, que ocupam uma superfície de 2.863.544 km².

Sabem quantas bases militares estrangeiras há nos EUA? Nenhuma. As tropas estadunidenses gozam de imunidade judicial e tributária nos países em que operam e dispõem da mais moderna tecnologia bélica, desde aeronaves não tripuladas, conhecidas por UAS (Unmanned Aircraft System), aos aviões F15 Strike Eagle com velocidade de 2.660 km/h, autonomia de voo de 5h 15min e capacidade de voar a 18 mil metros de altura.

Porém, não é só com equipamento bélico que os EUA cuidam de dominar o mundo. Utilizam sobretudo recursos ideológicos, como as produções cinematográficas hollywoodianas tipo Avatar, que visam a nos convencer de que a salvação vem de fora e vem de quem possui mais tecnologia e ciência.

Na última semana de janeiro estive no Equador participando de um evento que reuniu povos indígenas de quase toda a América Latina. Eles se sentem ameaçados, inclusive pelos novos governos democráticos-populares. À exceção de Evo Morales, é difícil para os demais governantes reconhecerem que os povos indígenas têm direito à língua, cultura, sistemas ecônomico e escolar, métodos de produção e terra próprios.

Isso lembra uma antiga parábola oriental: ao observar que o macaco tirou o peixe da água e o colocou no cimo da árvore, a águia perguntou-lhe por que fizera aquilo. O macaco respondeu: "Para que possa respirar melhor e não morrer afogado".

É esse nosso colonialismo estranhado, essa nossa subserviência aos "valores" consumistas do mundo ocidental, essa reverência ao american way of life, essa convicção de que a felicidade reside na posse de bens finitos e não de valores infinitos, que nos faz tirar o peixe do rio para que o rio possa respirar melhor...

Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

Texto originalmente publicado na edição Nº 156, Mar. de 2010 da revista Caros Amigos.

Pequena história dos omissos



Por Ferréz

10 pras três da madrugada
Sem conseguir dormir
Que hora vou ligar pro terminal
Pro ônibus poder buscar
Quem no meio do caminho vou multar
Me empurrar, um homem pelo meio
Na periferia tumultuada sem calçada
Numa sociedade que não valoriza nem o inteiro
Se a deficiência tá em mim, porque porto ela assim
Falta de rampa, falta de acesso
Espaço garantido pela lei para trabalhar
Mas todos riem do esforço que faço pro salário honrar
Eu desço a avenida pra pedir uma informação
Encosto a cadeira, e o motorista diz que não tem um tostão
Tenho pena da deficiência dele em entender
Que o cadeirante não é dependente de sua esmola pra viver
O aleijado, mutilado é aquele que não faz nada pelo próximo
Cada um de nós, uma história, mas todos olham para as rodas
Sofrem não por mim, mas quando se imaginam no meu lugar
Andam de carros que sufocam o bebê
Compram tênis que mutila a criança
Correm muito para perseguir o tempo perdido
É nessa hora que eu entendo meu papel nisso
Pego meu caderno, escrevo algumas frases
Nesse texto eu jogo bola e caminho a largos passos
Escrevo sobre olhar um pássaro, com defeito na asa
Que merece ser tratado com carinho, pra voltar pra casa
Em meio a soldados da mentira
Mensageiros da hipocrisia
O ser humano é complicado
Constrói, destrói, altera o planeta
Usa todo o conhecimento não para a cura
Mas pra promover a diferença
Consegue chegar até em outro mundo
Mas não me faz sonhar em andar por um segundo
Calma! A história não termina tão triste
Com meu protesto, escrevo, invento e canto um mundo com mais compromisso
E mano, fica tranquilo, mesmo de cadeira de rodas
Eu chego mais rápido do que os omissos.

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia. Texto publicado na edição Nº 156, Mar. de 2010.

Texto originalmente publicado na edição Nº 156, Mar. de 2010 da revista Caros Amigos.

terça-feira, 23 de março de 2010

Respeito ao clássico



Por Tatiana Alméri

O desenvolvimento do sistema capitalista não fez com que a estruturação teórica do pensamento de Marx não se fundamentasse na estrutura econômica e social atual. O produto continua sendo propriedade do capitalista, e não do operário, assim, “O capitalista para, por exemplo, o valor diário da força de trabalho; logo, o seu uso lhe pertence. Do mesmo modo lhe pertencem os outros elementos necessários à fabricação do produto: os meios de produção.” (MARX, 1982, p. 34), O plus da atualidade é que os meios de produção valem mais do que a própria força de trabalho, ou seja, as máquinas são muito mais valorizadas que as pessoas, salvo exceções. Hoje, prefere-se investir em tecnologia a valorizar pessoas, afinal as máquinas são, muitas vezes, mais eficientes, não faltam no serviço, conseguem fazer o trabalho em um tempo muito mais diminuto e quando quebram podem ser substituídas sem que o produto final se altere.

A mais-valia – coeficiente entre o valor que os trabalhadores produzem e os respectivos salários, é uma diferença que acaba se sintetizando em um trabalho gratuito, uma venda sem remuneração, uma transferência de excedente para os capitalistas, a qual se resume no lucro e também em uma grande ferramenta da divisão de classe no Sistema Capitalista – continua sendo um dos principais abusos dos burgueses, ainda mais com o grande índice de desenvolvimento tecnológico, porém, esta é “camuflada” pela famosa Participação dos Lucros e Resultados (PLR).

Historicamente, uma das lutas dos trabalhadores se sintetiza na tentativa de que as pessoas participem não somente dos problemas de uma empresa, mas também das decisões e dos resultados alcançados pelo grupo empresarial. Surge aí um conceito de administração participativa, como um mecanismo de recompensa ao trabalho dos proprietários aos trabalhadores, o que, teoricamente, mantêm os trabalhadores próximos às tomadas de decisões sobre seu próprio trabalho. A luta pela obtenção, na prática, da PLR é tão grande que, certamente, deixou-se de lado a reivindicação proposta por Marx com relação à mais-valia, algo que, se calculado corretamente, seria, quantitativamente, um valor muito maior que a própria PLR.

Além da venda da força de trabalho, da existência da mais-valia e da PLR, a não reflexão sobre os acontecimentos históricos está cada vez mais fundamentada, o que justifica Marx afirmar que a força motriz da História é a luta de classes. As classes sociais, atualmente, no Brasil, não conseguem se unir para reivindicar direitos, e com isso a corrupção está cada vez maior, a classe dominante continua fazendo o que deseja com a “massa” e assim a dominação capitalista se fundamenta com mais vigor.

Quando Marx afirmava: “Proletários de todos os países, uni-vos” estava mostrando que a união da maioria poderia fazer com que a opressão, possibilitada pelo Sistema Capitalista, se desconfigurasse, isso por intermédio de uma Revolução. E, por incrível que pareça, é disso que estamos necessitando no século XXI, não necessariamente de uma Revolução concreta, mas quem sabe várias reformas, que trouxessem uma modificação nas estruturas vigentes. Mas para isso seria inevitável a prerrogativa de Marx, UNI-VOS!

Uni-vos a favor da reflexão, das reivindicações, das estruturas que não concordamos, do fim dos pensamentos opressores e do basta a todas essas reclamações feitas diariamente sem uma fundamentação teórica, sem nada para se calcar concretamente e de exigências individuais. Marx, ou outro clássico que identifique? Necessita-se deles mais do que enxerga-se, são de fundamentos que surgem reflexões coerentes.

Tatiana Alméri é socióloga pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Sociologia Política.

Texto originalmente publicado na edição Nº 26, Fev. 2010 da revista Sociologia.

Machucar impunemente o corpo do outro



Por Liliana Lavoratti

É permanente e antiga a prática autorizada da violência física contra os mais fracos, sobretudo pobres e negros. No período escravocrata, os negros chegavam a ser espancados em público como demonstração de prestígio e poder dos senhores. “A intrusão sobre o corpo do homem pobre e negro é um elemento constante e contemporâneo. Machucar determinados corpos é uma autorização a priori. Se os violadores escolherem o corpo e o lugar certos, provavelmente nada acontece, tamanho é o grau de impunidade”, afirma o psicanalista Paulo Cesar Endo, professor doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

As estatísticas não deixam dúvidas: o Brasil está entre os cinco países que mais matam jovens (17 a 24 anos) no mundo, vítimas das forças policiais e homicidas. O período que mais se torturou no Brasil foi depois da ditadura. “Essa é outra constatação que indica claramente que a permanência dessas agressões está diretamente vinculada com o legado deixado pelos aparelhos utilizados no período ditatorial contra os que resistiram ao autoritarismo”, argumenta o psicanalista.

Se na década de 1970 o alvo eram os militantes de organizações de esquerda, líderes estudantis e intelectuais que se insurgiam contra o regime militar, com o fim da ditadura, os pobres – sobretudo os negros, jovens e de baixa escolaridade – passaram a ser as vítimas da agressão do corpo físico, explica o professor da USP. “Embora qualquer cidadão possa ser atingido pelo livre arbítrio das forças de segurança, que não querem abrir mão do privilégio de machucar algum corpo alheio, existe um grupo de vítimas privilegiadas”, acrescenta.

Não é por menos que os brasileiros evitam abordar os policiais, que a princípio existem para proteger a população. Segundo Endo, o aparato de segurança, usado no passado para combater a guerra urbana e rural continua agindo como nos tempos do regime militar, mesmo depois do Estado democrático de direito. Ao perceber que a estrutura de segurança é usada contra a população, os cidadãos passam a ver o Estado como algo separado de sua realidade e começa a conceber a possibilidade de justiça pelas próprias mãos, e a segurança privada ganha espaço. “Num sistema em colapso como o nosso, com aumento dos índices de letalidade da violência, não existe a menor condição de o Estado vir em socorro logístico das vítimas, proporcionando reparação”, afirma o psicanalista.

Não é por acaso que se reproduzem nas grandes cidades os Centros de Referência e Apoio às Vítimas de Fóruns contra a Violência, iniciativas da sociedade civil que oferecem algum amparo material e psicológico a vítimas e familiares de violações sofridas em espaços públicos. “Infelizmente, os pobres não possuem organização nem recursos como os militantes políticos do passado, que conseguiram reivindicar reparação”, acrescenta.

E, mais uma vez, se estabelece o círculo vicioso: o corpo que tem direito à proteção é o do endinheirado capaz de contratar segurança privada, pois o único lugar seguro fica sendo o privado. Na avaliação do professor da USP, esse quadro levará algum tempo para mudar, uma vez que o Estado se move de acordo com a sociedade. “E a nossa sociedade ainda é extremamente conservadora em relação a esse tema, Vê na pena de morte, na redução da maioria penal e no não reconhecimento dos crimes de tortura a saída para o problema da violência”

Liliana Lavoratti é jornalista e escreveu para esta edição.

Texto originalmente publicado na edição Nº 26, Fev. 2010 da revista Sociologia.

Para os calouros


 
Por Elisson César

Preparados no ensino médio e não raramente em cursos públicos ou particulares, seus nomes constam na lista dos aprovados; alimentam um ritual de corte de cabelo para os meninos e depilação da sobrancelha para as meninas; são tomados pela ansiedade para realizar a matrícula; ficam apreensivos, até mesmo com medo do trote feito pelos veteranos e nutrem a incerteza de estar ou não fazendo a opção correta. Estes são os nossos calouros.

Curso superior, novos professores e disciplinas, uma estrutura que naturalmente se diferencia da escola, um ambiente que parece familiar, mas que nos causa estranhamento e mais que isso: lugar onde se deposita a esperança de realização de sonhos, de profissões, de ideais, de uma proposta para o futuro. Se ainda não foram apresentados a ela, essa é a universidade.

Para uns o choque é inevitável, após a euforia de ser aprovado começam as aulas na tão esperada faculdade e, para muitos, começa também a dificuldade de se adaptar a uma nova maneira de aprender, uma nova fórmula do que é ser aluno. Essa afirmação não significa que ao inserir-se nesse mundo torna-se menos inteligente ou as capacidades individuais ficam reduzidas, mas nada será como antigamente, ao menos não deve, pois esse novo ser que agora surge necessita ganhar autonomia, portanto, deve mais que nunca propor, discutir, questionar, ler, levantar dúvidas, acrescentar, enriquecer, somar, na constante tarefa de ser estudante e de fazer parte de um processo chamado ensino-aprendizagem. Parece discurso de professores do ensino fundamental, entretanto aplica-se perfeitamente à nossa realidade: somos alunos e é na relação dialógica que estabelecemos com os nossos professores que se constrói o conhecimento.

E o que dizer das Ciências Sociais?! Isso é uma disciplina?! É um bicho?! Uma profissão?! Uma ideologia?! Um ramo da ciência?! Um centro de formação para loucos?! Um curso para pessoas que querem mudar o mundo?! Há quem pense que no início até queremos mudar o mundo, depois vemos que isso é um tanto difícil, decidimos então modificar a América Latina, até percebermos que talvez não seja tão simples assim. Podemos optar por querer um Brasil melhor, mas no fim a nossa cidade é o que finalmente importa e de repente, meus camaradas, o que nos resta é a luta pela sobrevivência.

A possibilidade de modificar a si mesmo e se revestir de valores humanos já é o bastante pra se ter a pretensão de mudança naquilo que julgamos ser difícil mudar, para tanto, é preciso pensar universalmente e se perceber enquanto parte integrante de um mundo que caduca e que precisa de esforços para o entendimento das suas dinâmicas sociais e das relações que permeiam esse contexto.

Mas, voltando às nossas indagações... O que seria mesmo as Ciências Sociais? Um emaranhado de coisas que falam da sociedade? É aquela disciplina que temos no colegial chamada de estudos sociais? Seria aquele atendimento que é oferecido em hospitais, o tal Serviço social? É aquele curso que só serve pra gastar dinheiro? Ou ainda um curso de quem é frustrado e queria mesmo era fazer direito? Bom, há quem afirme um pouco de cada coisa, mas a resposta correta, que lhe deixe satisfeito completamente talvez nunca seja dada, ou quando você estiver no final da vida, por falta de opção, formule um conceito que considere a sua definição do que é "isso". Porque toda Ciência Social é um pêndulo que por hora nos é subjetiva demais, e não obstante se torna tão objetiva e coerente que assusta. É algo que se sente, se vivencia, experimenta e qualquer resposta é insipiente perto da grandeza do que representa, ao mesmo passo, a abstração e a concretude dessa coisa que se veste de ciência e se enfeita de humanidade.

Sobre nós? Bom... Alguns serão assim como forasteiros e estão aqui de passagem, meio pra lá, meio pra cá, que não sabem ainda o que querem da vida e aqui se firmaram por falta de opção ou por qualquer outra motivação que cabe a si responder. Têm outros que estão convictos do que fizeram, escolheram por afinidade, por se sentirem à vontade nesse meio em que nos encontramos. Ainda há aqueles que não vêem esse curso como um fim em si mesmo. Fim? Quem disse que essa história acaba aqui, é apenas o início de um caminho que vai ser trilhado exclusivamente por nós, portanto, devemos ponderar nossas escolhas, nossas ações e extravasar quando preciso for, mas ser responsável pra assumir que o profissional e o ser humano que se produz e se reproduz constantemente, além de ser um produto social é também construído por nós.

Elisson César é estudante do curso de Ciências Sociais da UNIVASF.

Texto apresentado na semana de integração para os calouros do curso.

Por uma Assembleia reformista



Por Guilherme Scalzilli

O sistema democrático brasileiro jamais será plenamente consolidado enquanto o Legislativo continuar atolado na imoralidade e no descrédito público. A crise é tamanha que exige uma completa modificação de paradigmas.

Evitemos tentar resumir esboços viáveis para um projeto dessa complexidade, que exige debates extensos e embasamento técnico. Parece indiscutível, porém, que uma reforma política eficaz envolve a amplo espectro temático, atingindo desde a atividade parlamentar às regras eleitorais, passando pela própria administração das Casas. Tendo em vista a magnitude das transformações necessárias, os congressistas possuem motivos de sobra para evitar empreendê-las.

Portanto, a reforma só poderia nascer por iniciativa da sociedade, através de mecanismo criado exclusivamente para desenvolver um plano de atuação pré-estabelecido. Esse instrumento chama-se Assembleia Constituinte. Em qualquer dos muitos formatos possíveis, sua principal característica será a legitimidade das decisões, consagradas no processo de escolha dos representantes.

Para facilitar as deliberações e o acompanhamento público, o colegiado deverá ser pouco numeroso, com pauta restrita e plataformas inequívocas. É crucial salientar o foco especificamente político, pois circulam no Congresso propostas de plebiscito para referendar a convocação de Constituintes com poderes múltiplos demais, o que pode acarretar dispersão e desvios de finalidade.

Encaminhada com responsabilidade, a ideia conquistará pleno embasamento constitucional e sólido apoio da população, cujo anseio por mudanças é incontestável. Mas, além desses requisitos básicos, a democracia participativa depende também de contextos históricos propícios – e a oportunidade, se realmente existe agora, talvez demore muitos anos para renascer com a mesma força.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora casa amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com.

Texto originalmente publicado na edição Nº 155, Fev. 2010 da revista Caros Amigos.

Jobim, Vannuchi e a memória brasileira



Por Frei Betto

Indignados com o Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado por Lula, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das Forças Armadas teriam apresentado suas renúncias, recusadas pelo presidente.

Lula teria prometido rever pontos do programa, como os que exigem a instalação de uma Comissão da Verdade, a abertura dos arquivos militares e a retirada, de vias públicas, de nomes de pessoas coniventes com a repressão da ditadura.

O ministro Paulo Vannuchi, de Direitos Humanos, cumpre seu dever de cidadão e autoridade. O Brasil é o único país da América Latina, assolado no passado por ditadura militar, que prefere manter debaixo do tapete crimes cometidos por agentes públicos.

A lei da anistia, aprovada pelo governo Figueiredo, é uma aberração. Anistia se aplica a quem foi investigado, julgado e punido. O que jamais ocorreu, no Brasil, com os responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos. Aqueles que lutaram contra regime militar e pela redemocratização do país foram, sim, severamente castigados. Que o digam Vladimir Herzog e Frei Tito de Alencar Lima.

Tortura é crime hediondo, inafiançável e imprescritível. Ao exigir que se apure a verdade sobre o período ditatorial, o ministro Vannuchi e todos nós que o apoiamos não somos movidos por revanchismo. Jamais pretendemos fazer a eles o que eles fizeram a nós. Trata-se de justiça: descobrir o paradeiro dos desaparecidos; entregar às suas famílias os restos mortais dos que foram assassinados e enterrados clandestinamente; comprovar que nem todos os militares foram coniventes com as atrocidades cometidas pelo regime; livrar as Forças Armadas da influência de figuras antidemocráticas que exaltam a ditadura e acobertam a memória de seus criminosos.

O presidente Lula não merece tornar-se refém dos saudosistas da ditadura. É a impunidade que favorece, hoje, a prática de torturas por parte de policiais civis e militares, como ocorre em blitzen, delegacias e cadeias Brasil afora.

Inútil os militares tentarem encobrir a verdade sobre o nosso passado. Até no filme de Fábio Barreto, “Lula, o filho do Brasil”, a truculência da ditadura é exposta em cenas reais e fictícias. “Batismo de sangue”, de Helvécio Ratton – o filme mais realista sobre o período militar – revela como jovens estudantes idealistas eram tratados com uma crueldade de fazer inveja aos nazistas.

Anistia não é amnésia. O Brasil tem o direito de conhecer a verdade sobre a guerra do Paraguai, Canudos e a ditadura instalada em 1964. Bisneto e neto de militares, sobrinho de general e filho de juiz de tribunal militar (anterior ao golpe de 64), gostaria que os nossos Exército, Marinha e Aeronáutica fossem mais amadas que armadas.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L. F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros. 

Texto originalmente publicado na edição Nº 155, Fev. 2010 da revista Caros Amigos.